A Força do Querer: Drama de Ivana continua atual e representa comunidade LGBTQI+

Por - 18/02/21 - Última Atualização: 6 abril 2021

Divulgação/TV Globo

Exibida originalmente em 2017, A Força do Querer entra em sua reta final em edição especial na faixa das 21h por conta da pandemia da Covid-19, que fez os Estúdios Globo fecharem por medidas de segurança. Um dos destaques da trama de Glória Perez envolve os conflitos de Ivana/Ivan (Carol Duarte) acerca de sua sexualidade e gênero. Criada como uma menina fashionista, ela não se reconhece no corpo de uma mulher e traz para o horário nobre um tema tabu para a sociedade, a transexualidade. Ivana/Ivan é um homem trans (nasceu em corpo de mulher, mas sente-se como um homem).

Duas especialistas ouvidas pelo OFuxico defendem e elogiam a forma como Glória, reconhecida por suas tramas progressistas, contou os conflitos da personagem, que enfrenta a família, amigos e a sociedade em busca do seu verdadeiro eu. Nos últimos capítulos a história mostrou o desejo de Ivan ter seus documentos atualizados como um nome masculino. Nesta semana ele revela para a família que está grávido, fruto de seu relacionamento com Cláudio (Gabriel Stauffer). Ao longo dos últimos meses a novela mostrou os altos e baixos da história que chega ao fim em março.  

Para Carla Boin, doutora em Justiça Restaurativa, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Diversidade, Intolerância e Conflitos da USP e vice-presidente da Comissão Especial de Justiça Restaurativa da OAB/SP, “O fato da história ser apresentada no horário nobre traz inúmeros à sociedade pelo fato de possibilitar a aproximação das pessoas com realidades diversas do que estão habituadas. A comunidade LGBTQI+ se vê representada e integrada, deixa de ser vista à margem da sociedade”.

Cena interpretada por Carol Duarte e Maria Fernanda Cândido em A Força do Querer

Boin acredita que o tema ficou ainda mais próximo das pessoas, mas a onda conservadora, motivada pela política, é um obstáculo a ser vencido:


“Temos programas como o BBB mostrando o primeiro beijo entre dois homens. No entanto, vivenciamos um momento político que potencializa a intolerância e a manifestação de violências de todas as formas. Sinto um movimento com forças que se tensionam e por vezes se polarizam, o viés político conservador reforça os antagonismos. Por essa razão é de extrema importância que esse tema seja tratado e apresentado nas mídias”.

Por conta das interferências políticas, Carla analisa que há muito a ser feito quando o assunto chega aos direitos civis: “A inclusão da comunidade LGBTQI+ passa pela mudança de percepção das pessoas que criam as políticas públicas. O entendimento, respeito e legitimação dessa comunidade pressupõe abertura para o diálogo para que possam ter voz e participação nessa construção”.

Há poucos dias, Ivan sofreu ataques homofóbicos, fato que assombra a vida de milhares de membros da comunidade LGBTQI+ no Brasil, em especial, país que mais mata transexuais e travestis no mundo, para Carla ações precisam ser feitas imediatamente: “A violência pode ser combatida a partir do desenvolvimento de práticas que valorizam o diálogo, como a Mediação e a Justiça Restaurativa. A Mediação e a Justiça Restaurativa propõem um pensamento crítico sobre a cultura punitivista e promove reflexões sobre a complexidade que envolve as relações humanas, os conflitos e a violência. Essas práticas levam em consideração não somente os aspectos relacionais interpessoais, mas também, os comunitários, institucionais e sociais. As práticas restaurativas demandam um modelo mental que valoriza aspectos relacionais como: afeto, escuta, empatia, acolhimento, hospitalidade, confiança, generosidade, interdependência, dentre outros. Têm o potencial de gerar ganhos ‘transversais’ como construções de novas narrativas sobre Direitos Humanos, considerando os contextos vivenciados. Essas práticas visam a construção de espaços seguros de fala, escuta e acolhimento das diferenças. Valorizam as relações horizontais, a participação democrática e o resgate do entendimento de comunidade a partir do fortalecimento das relações”.

Para Carla Cecarello, psicóloga, terapeuta sexual e mestre em ciências da saúde, o tema abordado não fez os casos dispararem nos consultórios: “Houve um aumento da discussão sobre o tema. Antes da novela o assunto era muito velado. Hoje já participei de vários programas na TV em que o tema foi amplamente discutido”. Dona de um canal no Youtube, "Sexualidade e você", Cecarello afirma que a história não seria boicotada se fosse inédita, levando em conta o momento em que estamos passando, um país mais conservador: “As pessoas de um modo geral, inclusive por conta dos boicotes existentes, não conseguem mais aceitar certas colocações verbais, comportamentais. Hoje está ficando cada vez mais forte entre as pessoas, o direito de cada um”. 

Drama da personagem é atual é importante para a sociedade

Assim como Ivan, pessoas trans enfrentam a rejeição da família, o que se comprova nos consultórios: “A incompreensão dentro da própria casa, onde mais tentam encontrar aconchego. Não encontrando apoio familiar, começam a buscar fora dela e, acabam encontrando, na maioria das vezes, o mesmo preconceito. A busca pela compreensão familiar e não encontrando faz com que outras questões surjam, como por exemplo, com quem se relacionar, onde trabalhar, o que fazer, procurar se encontrar como pessoa”. 

A reação da família é como a apontada na novela, em que os pais rejeitam, tentam encontrar erros na educação dos filhos? Cecarello concorda: “Sim, o primeiro movimento da família é entender onde erraram em relação à educação familiar. Começam a procurar e encontrar problemas em muitos pontos da família. Algumas famílias acabam por nem ter esse questionamento no começo, mas entende a transexualidade como sem vergonhice, como se a pessoa só quer encontrar problemas para afrontar os pais ou até porque não querem nada com a vida”. 

O tema não é novo, há séculos é estudado por especialistas como aponta Carla: “A primeira ideia de transição de um sexo ao outro já surgiu na mitologia grega na história de Tirésias que ao ser punido pelos deuses, viveu parte como mulher e acabou experimentando dois campos do gozo e revelar que a mulher goza mais que o homem. Temos, também, o caso da Roberta Close, modelo muito conhecida, Rogéria atriz e comediante. Os primeiros médicos a explorarem as questões de gênero como patologias sexuais foram Magnus Hirschfeld e Havelock Ellis, por volta dos anos 1910”. 

O tema chegou na vida de Ivan cedo, mas é mais conflitante quando surge na juventude ou na vida adulta? Cecarello destacou que em todas as fases da vida é conflitante: “Quando se é mais velho, a pessoa já passou por muitas experiências que acumulam sentimentos que podem provocar mais dificuldade para um posicionamento social e pessoal. Quando se é mais jovem, em compensação, a dependência familiar é bem maior, o que também não é muito fácil de se lidar”. 

Mas quais são os termos corretos quando falamos em gênero, sexualidade da personagem? Cecarello então explica: “Chamamos de homem trans (nasceu em corpo de mulher, mas, sente-se como um homem) e mulher trans (nasceu em corpo de homem, mas sente-se como mulher)”.  Afinal, como a psicanálise explica as transformações da Ivana/Ivan? “A pessoa não se reconhece no corpo que nasceu. Não se reconhece com os estigmas sociais que são submetidos. O conflito entre o que se é psicologicamente com o corpo físico gera angústias e incertezas sobre a própria vida. Portanto, todo o trabalho a ser feito é sobre a aceitação primeiramente de si mesmo para posteriormente lidar com as questões externas”, finalizou Carla.

A Força do Querer: Ivan é constrangido ao usar banheiro masculino

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