Vice: Para diretor, filme narra a história de como chegamos à era Trump

Por - 29/01/19

Reprodução/YouTube

Vice, o mais recente filme de Adam McKay, não fica em cima do muro ao biografar Richard (Dick) Bruce Cheney em sua ascensão política até ocupar o posto de 46º vice-presidente dos Estados Unidos, onde ficou por oito anos (2001 a 2009). McKay toma partido contra os liberais e conservadores do Partido Republicano sim. Naturalmente, as críticas já vêem com endereço conhecido. A família Cheney, porém, ainda se mantem calada.

O diretor, que devorou muitos livros e artigos sobre Dick Cheney, afirma que houve uma investigação minuciosa, muitas vezes não oficial, para checar e re-checar a autenticidade de fatos e eventos retratados. Uma grande equipe, incluindo advogados e jornalistas investigativos de checagem, aprofundou-se em sua vida e obra política.

Para McKay, Vice é a história de como chegamos aqui. Ao Trump ser eleito, o diretor parou o projeto de Vice, já em andamento, para perguntar à si mesmo e à sua equipe se deveriam continuar. Depois de anos de maturação, o argumento escapou de ser preterido, e, ao contrário, foi se tornando mais e mais relevante. No processo de filmagens em setembro de 2017 e de edição, o diretor conta que era assustador o quanto tudo se alinhava com a época atual, mais de dez anos depois.

O principal fio condutor deste estado de coisas é explorado no filme didaticamente. Chama-se “teoria executiva unitária” (Unitary Executive theory), advinda do direito constitucional americano, que sustenta que todo o poder executivo pode ser assumido pelo presidente. Ele tem autoridade sobre os membros do executivo e controle total. Seu poder pode ser moderado apenas pela Constituição, na interpretação do Judiciário. O Congresso, por sua vez, pode conter o presidente apenas por censura, impeachment ou emenda constitucional. A legislação restringindo o Executivo não tem poder. Empregada por alguns presidentes, especialmente nos governos de Nixon e Bush, esta teoria englobaria também decisões sobre política externa e os mais variados assuntos domésticos, formatando o que os críticos chamam de Presidência Imperial. Sob Trump, a teoria executiva unitária está de volta ao governo com força total, graças à recente polêmica nomeação do juiz Brett Kavanaugh à Suprema Corte de Justiça americana.

Não por coincidência, Dick Cheney esteve intimamente ligado às administrações Nixon e Bush, quando a teoria executiva unitária foi basal para a atuação do mandatário número um do país. Em Nixon, pelas mãos do astuto Donald Rumsfeld, saiu de um estado letárgico de idiotice para uma posição de articulador visionário e muito eficiente. Tendo amparo legal de Scooter Libby e apoio de Rumsfeld, consolidou seu valor de mercado na Casa Branca e oportunamente assumiu a vice-presidência, agora detentora do poder real, apenas entregue imageticamente por George W. Bush.

Sob esta égide, Dick Cheney foi um dos mentores da guerra ao terror que alimentou a imaginação dos americanos no seu ódio contra os muçulmanos e legitimou a invasão ao Iraque. Com um serviço de inteligência operando apenas com suposições e boatos e amplificado pelo New York Times e a Fox News, Cheney liderou uma ação que mataria um milhão de americanos, mas enriqueceria substancialmente alguns poucos cidadãos milionários com o ouro negro.

Como aliada de primeira hora, o Cheney de McKay, vivido por Christian Bale, contava com sua impetuosa esposa, PHD em literatura, Lynne Cheney. Em nova dupla amorosa com Bale, Amy Adams novamente marca seu território com firmeza e muita ambição, algo nada usual para uma esposa de um funcionário da Casa Branca. Ela coloca seu marido zero à esquerda contra a parede quando moravam em Wyoming e o ensina a nunca se intimidar com o poder. Bem conhecida da classe de Hollywood por seguir à risca os preceitos do Tea Party Republicano, se opondo contra tudo, Lynne é, contudo, reverenciada respeitosamente por Amy Adams, e isso transparece em sua atuação.

A atriz aponta o que a fascinou na personagem: Lynne não teve vergonha de dividir a ambição com Dick Cheney, quando não se fazia isso, nem tampouco de trabalhar para projetá-lo além de sua capacidade. Como uma companheira motivadora, presente muito mais ao lado do marido que propriamente atrás dele, Lynne ganha considerável destaque no filme de Mckay.

O absurdo e as referências pop inundam a tela, em largas passadas, vindos, por exemplo, da perspicácia dos Monty Phyton (como a hilariante cena de Shakespeare). A história revisitada sob o ângulo de McKay também chama a atenção em momentos geniais como no jocoso patriotismo da Fox News encorajando a invasão do Iraque, com uma Naomi Watts ancorando o jornal, pateticamente. E também no lamentável caso silenciado pelo vice em que sua filha Liz, leal aos Republicanos e em disputa política, falsamente declara-se contra o casamento gay, para a desolação e desespero de sua irmã Mary, já casada com Heather Poe. O quarto poder, diga-se de passagem, também fecha a trama de maneira inusitada e escandalosamente engraçada.

Adam McKay escreveu seu próprio roteiro e Hank Corwin (A grande aposta, 2015) nos brinda com uma edição formidável, em que mistura cenas históricas com Nixon, Jimmy Carter, Hilary, Obama, Tony Blair a ficcionais com seus personagens cuidadosamente caracterizados: George W. Bush (Sam Rockwell), Donald Rumsfeld (Steve Carell), Colin Powell (Tyler Perry), Condolezza Rice (LisaGay Hamilton). Jesse Plemons, Alison Pill e Lily Rabe também se destacam notavelmente.

Sem dúvida alguma, a caracterização de Dick Cheney é a que mais salta aos olhos, autoria do makeup artist Greg Cannom, e faz jus à sua carreira premiada: três Oscar, o último deles em O curioso caso de Benjamin Button, com Brad Pitt. Somado com a já conhecida obsessão de Christian Bale em transfigurar-se integralmente em seus personagens, temos uma personificação incrivelmente realista.

A energia de Bale é fartamente correspondida por Steve Carrel e Sam Rockwell, em pujante sintonia entre seus personagens. Convergindo para a sátira, mas sem exageros, Jesse Plemons (Fargo, série da Netflix) faz um personagem chave no enredo. Cheio de surpresas, Vice tem mais cartas na manga que uma só crítica poderia suportar.

Há alguns achados no longa, como Alfred Molina encarnando um garçom em uma cena-esquete de variadas opções oferecidas ao vice-presidente como se fossem um menu esdrúxulo de um restaurante estrelado. Uma metáfora deliciosa. Por outro lado, alguns momentos bastante claros se inflam com verborragias inúteis. O ritmo frenético do longa deixa o público absorto.

No acender das luzes, é intrigante conhecer mais um modus operandi de como se dá a escolha de uma pessoa incompetente para um alto cargo executivo.

Como que um sujeito sem perspectivas, expulso de Yale, alcóolatra, trabalhando em uma ocupação pouco qualificada no interior de Wyoming, consegue se tornar uma eminência parda temida da maior potência capitalista do mundo? Esta é a principal pergunta a que Vice procura responder.

Além de uma sensação conhecida quanto ao envolvimento da família americana inteira em política em função de um de seus membros, aglutinados pelos meandros do poder político e econômico internacional, o filme emite sinais que compreendemos facilmente. Vice merece ser visto, re-visto e debatido em escolas de todo o país, sem partido e sem medo.

Vice ganhou um Globo de Ouro para melhor ator (Christian Bale) e está concorrendo a nada mais que oito Oscar: melhor filme, melhor ator (Christian Bale), melhor ator coadjuvante (Sam Rockwell), melhor atriz coadjuvante (Amy Adams), melhor diretor (Adam McKay), melhor roteiro original, melhor edição, melhor cabelo e maquiagem.

Vice tem estreia prevista para dia 31 de janeiro nos cinemas de todo o país.

Confira o trailer abaixo:

 

Matéria original do site Empoderadxs, cedida gentilmente para OFuxico.

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